terça-feira, 11 de agosto de 2009

GENTE CARACOL - A cidade contemporânea e o habitar as ruas



Edson Luiz André de Sousa & Rita de Cássia Maciazeki Gomes

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"É um traço fundamental de nossa cultura o homem desconfiar profundamente de pessoas fora do seu próprio meio"
Robert Musil - "O homem sem qualidades"

Uma experiência de vertigem irrompe dentro de nosso corpo diante do enigma da cidade contemporânea. Ritmos inebriantes subvertendo a lógica urbana dos sentidos nos mostram as cicatrizes destes espaços compartilhados. Olhar ao redor e ver que tudo move-se com velocidade, quase tudo. Esquinas que se cruzam, ruas infinitas de uma cidade que se compõe na multiplicidade de tantas outras. Cidade de cada olhar, cidade de cada andarilho que passa sem seguir os trilhos da estação. Em um ritmo sorrateiro, de um dedilhar de violão, compõem uma melodia única, com seus passos lentos perfurando o fluxo da multidão. Do meio, do centro aparecem esses corpos, como uma névoa que turva nosso olhar não habituado ao contorno desses seres desconhecidos que são constituintes da paisagem urbana.

O contato com a rua e com as realidades que ali se apresentam, para além da cobertura de um fino véu que a obnubila e nos protege, instaura uma sensação de vertigem, de embriaguez, "de euforia da rua"(1) que nos fere os sentidos e embaralha nossa percepção. O trabalho que nos propomos em Gente-Caracol: a Cidade Contemporânea e o Habitar as Ruas(2) foi o de nos aventurarmos a uma caminhada pelo espaço público da cidade e estabelecermos contato com a população em situação de rua. Estar na rua e estabelecer contato com o que ali se passa exige disposição para interação e trocas. Implica também permitir ser tocado, acarinhado e por muitos momentos perceber um ruído de perturbação em muitas certezas. Exige evidentemente uma atitude de implicação(3). A caminhada pela cidade de Porto Alegre esteve inspirada no movimento-do-trecheiro(4) que com passos lentos rompe a multidão. Assim, sob o céu da cidade, caminhamos com o povo da rua adentrando trechos, mocós, ruas, histórias de vida em busca de olhares, narrativas, gestos, expressões corporais que compõem seus modos de existir na cidade.


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O contato com a rua e com as realidades que ali se apresentam, para além da cobertura de um fino véu que a obnubila e nos protege, instaura uma sensação de vertigem


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Constatamos que pensar a 'cidade contemporânea' e o 'habitar as ruas' diz de um deixar-se permear pela 'diversidade da vida' presente nas grandes cidades; acompanhar e delinear os movimentos que se produzem, mas também abrir brechas para pensar as relações que se estabelecem a partir daí. Pensar a população em situação de rua é cada vez mais fundamental. O fato de abrirmos espaço para a população em situação de rua como meio de deixar falar, trazer uma realidade que pouco temos contato, e na maioria das vezes, já tão impregnada por uma visão estereotipada, estigmatizada, por si só, já se constitui em um desafio. Aqui trabalhamos de duas formas o enunciado 'habitar as ruas': enquanto espaço de interação, de encontro, espaço da pólis. Espaço de pensar a vida, de relacionar-se com o outro, de construir alternativas de vida de qualidade para todos e não apenas para alguns. E também, como espaço de abrigo, refúgio para àqueles que não moram entre quatro paredes, e têm a rua como casa.

No decorrer do trabalho através da contextualização da cidade contemporânea, em um breve histórico da cidade de Porto Alegre em relação às classes mais pobres, a ocupação da rua enquanto espaço de moradia e a constituição de uma casa na rua pudemos constatar que o habitar as ruas, na maioria das vezes, não passa por uma escolha. Assim, a constituição de uma gama de pessoas chamadas de 'moradores de rua' está pautada por uma questão sócio-econômica que contribui para o aumento de pessoas sem teto em nossas cidades. Chamamos a atenção para as muitas palavras que são utilizadas para denominar a população em situação de rua: mendigo, marginal, indigente, maltrapilho, louquinho, vagabundo, sem-vergonha, perigoso, preguiçoso, assim poderíamos enumerar tantas outras. Todas elas dizem de uma coisa em comum: o prejulgamento moral e os preconceitos estabelecidos em relação às pessoas que estão em situação de rua. Poderíamos indagar: Qual o lugar na cidade para a população em situação de rua? Que espaços são possíveis para àqueles que por vontade e/ou necessidade vivem em constante movimento?


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Assim, a constituição de uma gama de pessoas chamadas de 'moradores de rua' está pautada por uma questão sócio-econômica que contribui para o aumento de pessoas sem teto em nossas cidades.


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Poderíamos, aqui, lembrar de Kafka e a Muralha da China. O Imperador da China resolveu construir uma muralha que contornasse a imensidão do Império e o protegesse contra a invasão dos nômades vindo do norte. Tal construção mobilizou a população inteira por anos a fio. Conta Kafka que ela foi empreendida por partes: um bloco de pedras era erguido aqui, um outro ali, mais um acolá, e não necessariamente eles se encontravam, de modo que entre um e outro pedaço construído em regiões desérticas abriam-se grandes brechas, lacunas quilométricas. O resultado foi uma muralha descontínua cuja lógica ninguém entendia, já que não protegia de nada, nem de ninguém. Talvez apenas os nômades, na sua circulação errática pelas fronteiras do Império, tinham alguma noção do conjunto da obra. Enquanto isso, um sapateiro residente em Pequim relatou que já havia nômades acampados na praça central, a céu aberto, diante do Palácio Imperial, que seu número aumentava a cada dia(5). Poderíamos indagar o quanto essa história reflete a paranóia do Império que se frustra na tentativa de proteger-se dos excluídos que ele mesmo suscita, cujo contingente não pára de aumentar numa vizinhança de intimidação crescente no coração da capital. A muralha da China poderia ser aproximada à configuração da cidade contemporânea. Casas gradeadas, busca de maior conforto e segurança, um lugar a salvo, longe dos desconectados(6) do sistema. Dados da prefeitura de Porto Alegre, dizem que a cada ano que passa aumenta o número de pessoas em situação de rua. São pessoas que não mais moram entre quatro paredes, mas no coração da cidade e incomodam pelo simples fato de existir.


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O lugar que resta ao 'morador de rua'(7) é o lugar estigmatizado, colado a um discurso da população que o vê enquanto dejeto da sociedade.


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O lugar que resta ao 'morador de rua'(7) é o lugar estigmatizado, colado a um discurso da população que o vê enquanto dejeto da sociedade. Seu lugar é de não-lugar, de quem não deveria estar onde está, de quem deve seguir adiante, não se sabe para onde! Instala-se assim, um movimento de expulsão da casa, do sistema econômico que o força a estar no lugar do sem-nada, sem-vínculos, em falta com a sociedade, fora das relações sociais. Mas, dentro do espaço estigmatizado que lhe cabe: o marginal, o perigoso, o preguiçoso, que não quer trabalhar, que está na rua porque quer... Seria possível ter força para romper com este lugar já estabelecido socialmente? Ao olhar o mapa esquadrinhado da cidade, em ruas e casas, qual o lugar da pobreza na cidade concreta, dinâmica, historicamente reconstituída cotidianamente? Para responder a essas questões propomos uma desnaturalização da categoria 'morador de rua', tal como fora apresentada, e acompanharmos brevemente a experiência do Jornal Boca de Rua.

O Jornal Boca de Rua, é um periódico trimestral, produzido e comercializado pela população em situação de rua de Porto Alegre. Constitui-se em um espaço de escuta e fala, na medida em que se discutem temas referentes ao cotidiano das ruas, pautados nas edições do jornal. Sua potência de intervenção se produz no sentar com as pessoas, sentir o toque delas, contribuir para que se vejam como pessoas que têm direitos e que têm deveres. O fato de terem a oportunidade de se expressar sem intermediários faz os integrantes do jornal sentirem-se outra vez parte da sociedade que os excluiu, colocá-os como sujeitos de sua história, como pessoas que têm e conhecem seus direitos. A população em situação de rua tem o direito de se comunicar, expressar seus pontos de vista sobre a sociedade (coisa que um jornalista da grande imprensa não saberia fazer, por mais bem intencionado que fosse), reivindicar direitos, contestar os poderes que sobre eles interferem. Mas, o Jornal Boca de Rua tem a proposta de ir além, e ter um caráter emancipatório. Por meio do jornal, pretende-se que os participantes possam começar a escrever ou melhorar a escrita, voltem a estudar, tratem da saúde, estabeleçam outra relação com a cidade(8). Na primeira edição, o Jornal Boca de Rua trouxe como matéria de capa Vozes de uma Gente Invisível:


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Por meio do jornal, pretende-se que os participantes possam começar a escrever ou melhorar a escrita, voltem a estudar, tratem da saúde, estabeleçam outra relação com a cidade(8).


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O povo da rua passa fome, não tem onde morar, dorme na beira das calçadas, debaixo de ponte, dentro dos esgotos, em cima dos banheiros públicos, nos carrinhos de papelão ou em casarões abandonados. Mas o povo da rua fala. O povo da rua tem boca. (GENTE Invisível, 2000, p.1)

A comunicação abriu as portas para estas pessoas se sentirem vivas; uma estratégia de politizar a vida nua, como diria Agamben. Assim, o Jornal Boca de Rua pode ser pensado como um espaço de produção de agenciamentos, um espaço de falar e ser ouvido, de construir juntos formas de pensar sobre si mesmo, a relação com o outro e com a cidade. O que implica levar em conta o sistema capitalista, individualista, de uma distribuição de renda perversa e injusta em que estamos inseridos. O papel do jornal é também chamar a atenção da sociedade para o fato de que somente com uma mobilização de todos a realidade pode mudar. É preciso ampliar os canais de comunicação com entidades que trabalham com a população em situação de rua para que, efetivamente, a participação destas pessoas esteja garantida. A relação que se estabelece junto aos vendedores do jornal passa por uma relação de troca, em que todos aprendem tendo como mola propulsora o afeto, que é o diferencial do trabalho. Desta forma, acompanhamos no trabalho do Jornal Boca de Rua a força da comunicação como dispositivo que mobiliza um outro olhar sobre si e sobre a vida.

Indicamos, assim, que o habitar as ruas vem num sentido propositivo de abrirmos brechas em nossas relações para o convívio com o outro, com o diferente. Abrir-se a uma cidade múltipla, uma cidade do contato, da vida. Assim apontamos para uma indissociabilidade entre 'vida e política'. Ao estabelecermos uma crítica à privatização do espaço público que esvazia o que de político há nele - espaço aberto para as discussões - a polis, como diria Junia Vilhena, abrimos espaço para outras realidades para além das homogêneas. Nos abrimos para a multiplicidade, a instauração de uma cidade subjetiva segundo Tânia Galli. Percebemos a perturbação em nosso modo de vida na cidade contemporânea. Abrirmos nosso horizonte de visão para a estrutura social em que nos situamos. Exige desnaturalização da 'vida nua'. Faz-nos pensar em nosso papel enquanto parte da multidão que compõe a cidade, conforme Negri. E ainda, perguntarmos: o que cabe a cada um de nós? Questão crucial que nos deixa em estado de desassossego.


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Apostamos, portanto, em uma nova postura, uma proposta de estabelecer relação, de um pensar sobre si e sobre a vida que leve em conta o outro que está ao lado.


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Apostamos, portanto, em uma nova postura, uma proposta de estabelecer relação, de um pensar sobre si e sobre a vida que leve em conta o outro que está ao lado. Recusamos o argumento fácil da necessidade de construir silenciosamente a muralha que nos protege dos excluídos, num contraponto contundente ao que nos vendem o tempo todo os meios de comunicação. O Jornal Boca de Rua gera sua comunicação mesmo que para poucos. Pré-disposição portanto, ao estabelecimento de uma relação de 'luta e de encontro'. Luta de várias forças que permeiam vários olhares sobre si e sobre a cidade, luta que se dá entre a visão e a confusão de dois pontos de partida de história. Encontro que é potencializador de todos os acontecimentos que daí suscitarão(9).

E quem sabe, estabelecermos conexão com intervenções como a do Jornal Boca de Rua que abre espaço para o protagonismo de falas e críticas apresentadas pela população em situação de rua. De um protagonismo que emerge da possibilidade de apresentar-se como diferente e compor a gama de multiplicidade que se estabelece na cidade. Estaremos assim, estabelecendo uma relação utópica com a cidade.



NOTAS:

(1) Euforia da rua, termo utilizado pela população em situação de rua.

(2) Dissertação de Mestrado de Rita de Cássia Maciazeki Gomes, sob a orientação de Edson Luiz André de Sousa, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

(3) Utilizamos o entendimento de implicação segundo as contribuições da Análise Institucional. A análise das implicações coloca-nos a questão da necessária análise das relações que temos com o mundo, com o nosso campo de trabalho, com a nossa vida; refere-se, ainda, a importância das coisas serem analisadas em situação, no vivido. (R. Lorau in Ozório, 2003). Concordamos ainda com a idéias defendidas por Lúcia Ozório, 2003, quando diz que a implicação refere-se também às minhas disposições, ou seja, aos meus investimentos enquanto sujeito do inconsciente que tem algo que pulsa.


(4) Movimento-do-trecheiro, vem da idéia de trecho: espaço, o lugar ocupado pela pessoa em situação de rua.


(5) Cf. Peter Pal Pelbart Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. Resumo do texto de KAFKA, Franz. Durante a Construção da Muralha da China. In Narrativas do espólio. São Paulo: Cia das Letras, 2002.


(6) Idéias propostas por Peter Pal Pelbart, 2003.


(7) Optamos em não trabalhar com a categoria "morador de rua" numa tentativa de romper com o estigma associado a essa palavra como: o mendigo, o vagabundo, o marginal, o perigoso, o preguiçoso que não quer trabalhar, que está na rua porque quer... muitas vezes naturalizados em nosso cotidiano.


(8) De acordo com o texto-base do projeto do Jornal Boca de Rua, Porto Alegre, 2005. Texto inédito.


(9) Idéias de luta e encontro desenvolvidas por Cecília Coimbra em palestra proferida no X Encontro da Associação Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO Regional Sul, em Curitiba, em setembro de 2004.




REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

FONSECA, Tania Mara Galli. "A cidade subjetiva". In: Fonseca, Tania M. G. (org.) Cartografias e devires - a contrução do presente. Porto Alegre: UFRGS, 2003.

NEGRI, Toni. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

PELBART, Peter Pál. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

VILHENA, Junia. (2003). Da claustrofobia a agorafobia. Cidade, confinamento e subjetividade. In: Revista do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Ed. UERJ. Vol. IX. Pp. 77-90.E

http://www.polemica.uerj.br/pol16/oficinas/lipis_1.htm

Lei Maria da Penha completa três anos

A lei Maria da Penha, que protege as mulheres que sofrem violência doméstica, completou TRÊS anos./ Com a lei, aumentou a pena de lesão corporal leve em caso de agressão./ Também acabou com a necessidade de a vítima manter a queixa contra o agressor durante o julgamento e criou juizados especiais para tratar dos casos de agressões./ Além do aumento do número de denúncias nas delegacias especializadas, a lei fez crescer a busca pelo serviço telefônico da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres./ Entre Janeiro e Junho deste ano, o serviço registrou mais de CENTO E SESSENTA MIL atendimentos./ Um aumento de TRINTA E DOIS por cento em relação ao mesmo período de 2008.///
Fonte Chasque agência de notícias.