sábado, 16 de outubro de 2010

A campanha eleitoral assumiu um tom fascistóide, diz Maria Rita Kehl

A campanha eleitoral assumiu um tom fascistóide, diz Maria Rita Kehl

Celso Marcondes


Em entrevista a CartaCapital, a psicanalista responsabiliza Serra pelo nível do debate eleitoral, fala de aborto e corrupção.



O fim da coluna da psicanalista Maria Rita Kehl no O Estado de S.Paulo foi um dos assuntos da semana, em particular na internet. Seu artigo “Dois Pesos” foi pesado demais para os donos do diário paulista. Neste espaço, publicamos vários artigos a respeito. A repercussão enorme gerou até um abaixo-assinado que corre pela rede em sua defesa. Passado o impacto, Rita Kehl conversou com CartaCapital a respeito das eleições presidenciais, que ela acompanha de perto, com o olhar da profissional conceituada em sua área e também com a visão de cidadã e jornalista, carreira que seguiu nos tempos da ditadura. Ela se diz escandalizada com os temas que tomaram conta do debate eleitoral e responsabilizou a campanha do PSDB por isso.



CartaCapital: Teu artigo no Estadão discutia a disseminação de um grave preconceito através da rede. Essa parece ter sido uma característica do uso do veículo nestas eleições, em particular entre a chamada classe média.Você acredita que a internet, pelas suas especificidades, ajuda a este tipo de comportamento?

Maria Rita Kehl: Ajuda de fato. A internet, pela facilidade de acesso, pelas características que só ela tem, apresenta este potencial terrível de ser lugar da fofoca, de blábláblá. Mesmo quando não é um uso irresponsável, como são os casos destes tuites para dizer ”olha, eu estou aqui”, “eu existo”, “olha a foto do meu filho”, “do aniversário do fulano”. Mas tem também um potencial incrível, como a possibilidade de convocar uma passeata da manhã para a tarde, como aconteceu antes da guerra do Iraque, em vários países do mundo, e reunir milhões de pessoas. Então, eu não condenaria a internet, ela tem grande potencial, é um veiculo que dá justamente a possibilidade de você se incluir, de você escrever, pelo menos para quem é da classe média ou que tem acesso a uma lan house. Ela serve a essas duas coisas. Talvez com o tempo os leitores comecem a criar sua própria capacidade de discriminar.



CC: O preconceito que você identifica no teu artigo, este incomodo com a ascensão dos mais pobres, e por consequência com um governo mais identificado com eles, não é uma marca das nossas elites que aparece muito na rede?

MRK: Veja, a internet divulgou essas correntes preconceituosas, apócrifas, que sempre começavam assim: “uma prima minha”, “um parente meu”, “um amigo da minha empregada”, sempre assim. Mas por outro lado, o que tem de legal, é que, por exemplo, este meu artigo foi mais lido que qualquer outra coisa que eu jamais tenha escrito. Se ele tivesse ficado apenas no Estadão, ele teria sido lido, mas jamais deste jeito. Isso é uma coisa muito legal.



CC: Falemos de ética: você acha que o caso Erenice atingiu eleitoralmente esta classe média?

MRK: Eu acho que sim. Eu li um artigo dizendo que o caso Erenice foi mais decisivo para exigir o segundo turno que essa “fofocaiada” toda sobre o aborto. E, infelizmente, está certo. O governo para o qual eu voto e continuo votando tem uma leniência com a questão da corrupção, que deixa até difícil um petista defender, tenho que dizer isso. Lula naturalizou a corrupção, como sendo parte do jogo político. E aí, está bom, quando fica mais escandaloso, demite. Mas “deixa acontecer”, entendeu? Renan Calheiros, Sarney, são vergonhas que a gente tem que engolir, fica parecendo que é culpa da oposição agitar isso. Claro que ela vai agitar. Nós agitaríamos isso se aparecesse uma coisa tão escandalosa na outra campanha. A diferença aí – que é a favor da atitude do governo Lula, mas que ao mesmo tempo não o torna vítima – é que o governo Lula não consegue blindar a imprensa como o governo do PSDB consegue, porque tem a imprensa na mão. Então, quando surge alguma coisa, surge como fofoca que desaparece no dia seguinte. Como a coisa do Paulo Preto, que o Serra não respondeu no debate e ficou por isso mesmo. A gente sabe que é um governo que blinda. O Alckmin, como a candidatura dele estava bem, teve a campanha toda em céu de brigadeiro, do começo ao fim, não tinha ninguém que pudesse pegar alguma coisa e contestar. E se pegasse, não ia sair na imprensa. De fato, a grande imprensa se encarrega de censurar quaisquer denúncias sobre os governos que ela apoia. Mas mesmo que a imprensa seja parcial ao denunciar um caso como o da Erenice, o caso em si está errado, não poderia aparecer.



CC: O governo não poderia ficar surpreso com a “escandalização” feita pela grande imprensa, certo?

MRK: Claro! Ele sabe qual é o jogo e não era para ter corrupção deste jeito. Uma coisa ou outra você não controla, uma coisa pequena, mas para mim é difícil responder quando as pessoas dizem: “mas, como? Estava no nariz dela! Era uma coisa que estava a família inteira metendo a mão”. Coloca os petistas numa situação difícil.



CC: Esta eleição está sendo marcada também pela discussão de temas no campo da moral: aborto, religião. O que te parece isso?

MRK: Eu acho que isso mostra o atraso da sociedade brasileira. Porque, claro, nenhum candidato vai ser eleito se estiver em descompasso com a maioria da sociedade. O Plínio foi um exemplo ótimo, de um cara que falava tudo o que tinha na cabeça, tudo o que ele pensa de verdade, de uma forma consistente, porque ele não tinha compromisso de se eleger. O que me espanta é o atraso da sociedade brasileira. E a ignorância aí é apoiada pelo Serra de misturar questões religiosas com questões políticas. Como é que as igrejas começam a pautar a lei agora? Uma coisa é eles decidirem o que é pecado e o que não é, outra coisa é eles decidirem o que é ilegal e o que não é.



CC: E isso acabou virando pauta de campanha presidencial, não é?

MRK: Vira pauta e vira motivo de constrangimento. A campanha do PSDB tem responsabilidades sim, de acirrar esta intolerância religiosa neste momento da campanha. A Dilma respondeu duas vezes no debate da Band que neste País não tem intolerância religiosa. Fica esta irresponsabilidade feia do PSDB estar acirrando isso, mas ao mesmo tempo a sociedade mostra neste ponto como é atrasada. Aparecem comentários de que a Dilma é a favor do aborto como se ela tivesse o poder de decidir, se ela apoia o aborto, vai ter aborto. Como se isso não tivesse que passar pelo Congresso. Além de tudo joga muito com a ignorância do povo.



CC: E os candidatos chegam a “endireitar”, fazer campanha nas igrejas e citarem Deus à exaustão. Não acha que isso tem um papel deseducador, em particular para crianças e adolescentes?

MRK: Isso é o pior. Por um lado, eu acho que o problema da corrupção não é da responsabilidade do PSDB, eles vão extrair o máximo de vantagens que puderem arrancar deste caso da Casa Civil. Por outro lado, é responsabilidade sim, do PSDB e da campanha Serra o tom fascistóide que estas coisas estão adquirindo. É horrível que os candidatos tenham que aparecer ajoelhados comungando, dizendo que são a favor da vida…claro que são a favor da vida, quem é que não é?Agora, é a Igreja que não é a favor da vida. Aí é uma opinião minha. A ONG Católicas pelo Direito de Decidir me convidou para debater e elas pensam assim: a criminalização do aborto é uma questão contra a liberdade sexual da mulher, ponto.Não pode usar camisinha, porque a Igreja também é contra. Então é uma questão de dizer: sexo só dentro do casamento e só para ter filho. É isso, que não está escrito assim, mas é o que está dito. Se não pode usar preservativo, não pode evitar filho, não pode nem evitar infecções, epidemias como o HIV que mata milhões na África, que “a favor da vida” é esse?



CC: O Dafolha divulgou uma pesquisa que diz que a posição contra o aborto na sociedade aumentou depois destas semanas de discussão na campanha, veja o efeito nocivo.

MRK: Claro, porque o que circula é uma desinformação, “coitadinha da criancinha”, “eu poderia ter sido abortado” e “porque eu não fui abortado eu estou aqui”, não é neste grau. E a Marina tem responsabilidade nisso. Mesmo que a Dilma ganhe, a sociedade retrocedeu muito e isso é responsabilidade da campanha. É terrível.



Leia também:



Dois Pesos



Repulsa ao Sexo



Abaixo-assinado

terça-feira, 12 de outubro de 2010

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Dois pesos… O artigo que culminou na demissão de Maria Rita Kehl do Estadão




O Bolsa Família atende mais de 12 milhões de famílias do Brasil.
Dois pesos…
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Por Maria Rita Kehl, para o O Estado de S.Paulo

Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

Abaixo entrevista de Maria Rita Kehl (já demitida do O Estado de S.Paulo) para o site TERRA.


Psicanalista Maria Rita Khel.
Maria Rita Kehl: “Fui demitida por um ‘delito’ de opinião”
Por Bob Fernandes – Site Terra.

A psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida pelo Jornal O Estado de S. Paulo depois de ter escrito, no último sábado (2), artigo sobre a “desqualificação” dos votos dos pobres. O texto, intitulado “Dois pesos…”, gerou grande repercussão na internet e mídias sociais nos últimos dias.

Nesta quinta-feira (7), ela falou a Terra Magazine sobre as consequências do seu artigo:

- Fui demitida pelo jornal o Estado de S. Paulo pelo que consideraram um “delito” de opinião (…) Como é que um jornal que anuncia estar sob censura, pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?

Terra Magazine – Maria Rita, você escreveu um artigo no jornal O Estado de S.Paulo que levou a uma grande polêmica, em especial na internet, nas mídias sociais nos últimos dias. Em resumo, sobre a desqualificação dos votos dos pobres. Ao que se diz, o artigo teria provocado conseqüências para você…

Maria Rita Kehl – E provocou, sim…

– Quais?

– Fui demitida pelo jornal O Estado de S.Paulo pelo que consideraram um “delito” de opinião.

– Quando?

– Fui comunicada ontem (quarta-feira, 6).

– E por qual motivo?

– O argumento é que eles estavam examinando o comportamento, as reações ao que escrevi e escrevia, e que, por causa da repercussão (na internet), a situação se tornou intolerável, insustentável, não me lembro bem que expressão usaram.

– Você chegou a argumentar algo?

– Eu disse que a repercussão mostrava, revelava que, se tinha quem não gostasse do que escrevo, tinha também quem goste. Se tem leitores que são desfavoráveis, tem leitores que são a favor, o que é bom, saudável…

– Que sentimento fica para você?

– É tudo tão absurdo… A imprensa que reclama, que alega ter o governo intenções de censura, de autoritarismo…

– Você concorda com essa tese?

– Não, acho que o presidente Lula e seus ministros cometem um erro estratégico quando criticam, quando se queixam da imprensa, da mídia, um erro porque isso, nesse ambiente eleitoral pode soar autoritário, mas eu não conheço nenhuma medida, nenhuma ação concreta, nunca ouvi falar de nenhuma ação concreta para cercear a imprensa. Não me refiro a debates, frases soltas, falo em ação concreta, concretizada. Não conheço nenhuma, e, por outro lado…

– …Por outro lado…?

– Por outro lado a imprensa que tem seus interesses econômicos, partidários, demite alguém, demite a mim, pelo que considera um “delito” de opinião. Acho absurdo, não concordo, que o dono do Maranhão (senador José Sarney) consiga impor a medida que impôs ao jornal O Estado de S.Paulo, mas como pode esse mesmo jornal demitir alguém apenas porque expôs uma opinião? Como é que um jornal que está, que anuncia estar sob censura, pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?

– Você imagina que isso tenha algo a ver com as eleições?

– Acho que sim. Isso se agravou com a eleição, pois, pelo que eles me alegaram agora, já havia descontentamento com minhas análises, minhas opiniões políticas.

O jornalista Xico Sá, que assina uma coluna na Folha de S.Paulo, repercutiu o fato no seu perfil do Twitter: “Maria Rita Kehl seria a 1ª demissão da história por ter elogiado a atitude de 1 jornal.” Sá declarou, ainda, que a publicação exigia que ela não escrevesse sobre política, “só psicanálise”.

sábado, 5 de setembro de 2009

Economia solidária


Com a pesquisa “A Economia Solidária como Novo Movimento Social”, Paulo Marques (foto) a partir de seu doutorado em Granada (Espanha), conceitua os movimentos sociais contemporâneos na luta anti-capitalista da atualidade, avaliando o estágio e processo que vem configurando-se em um “movimento social de Economia Solidária”. Paulo Marques é do Coletivo Brasil Autogestionário.


LA ECONOMÍA SOLIDARIA COMO NUEVO MOVIMIENTO SOCIAL CONTEMPORÁNEO


¿Qué caracteriza a un movimiento social? ¿Es posible identificar una práctica económica colectiva – antagónica al sistema donde está inserto- como un nuevo movimiento social? Esa es una de las principales cuestiones que buscamos analizar en ese trabajo sobre la Economía Solidaria (ES) como movimiento social contemporáneo.[1] Para realizar este estudio debemos tener en cuenta el papel de los movimientos sociales en la sociedad contemporánea, ya sea porque actúan como motores de los cambios sociales o como reflejo de ellos, (Laraña, 1999:13).

En líneas generales es posible identificar los movimientos sociales como una variedad de intentos colectivos para producir cambios en las instituciones sociales, desde el proyecto revolucionario de crear un nuevo orden social hasta toda clase de transformaciones en el sistema de normas, significados y relaciones sociales (Giner, 2006, 579- 580).

La hipótesis que guía la investigación identifica el movimiento de la economía solidaria como un movimiento en construcción que surge como referencia de los llamados movimientos alterglabalización y Antiglobalización (Taibo, 2007; Calle, 2003) cuya expresión mayor son los Foros Sociales Mundiales-FSM, realizados hasta hoy en nueve ediciones (2001-2009) en todos los continentes.

Como objeto empírico de nuestro análisis presentaremos un estudio de la experiencia del Foro Brasileño de Economía Solidaria (FBES), creado en 2003 en el contexto del III Foro Social Mundial.

A partir de fines de los años 1990, una ola de protestas en diversas partes del mundo en contra la globalización capitalista, origina el llamado movimiento altermundialista u movimiento antiglobalización[2]. Sin embargo, son movimientos que buscan allá de acciones de protesta, presentar proposiciones alternativas en el campo político y económico. En el terreno de la política los movimientos apuestan por el desarrollo de formas de democracia directa, como las experiencias de los Presupuestos Participativos, en relación al ámbito económico las propuestas se orientan al desarrollo de fórmulas de economía social y autogestionada, conocidas de forma general como Economía Solidaria u alternativa. (Taibo, 2007: 63).

Son movimientos que nacen como resistencia y enfrentamiento a los impactos de la globalización neoliberal. En Latinoamérica la reacción fue a partir de la clase obrera sin trabajo que encontró en las acciones colectivas de ES una forma de resistencia práctica al problema del paro.

Tras quince años de aplicación del “Consenso de Washington[3]” que propició un crecimiento mediocre e inestable en todos los países de Latinoamérica, es posible avaluar ahora las consecuencias de este modelo de inserción en la globalización a partir de las premisas neoliberales. La más significativa fue la composición y evolución de las clases sociales latinoamericanas. Los años de políticas neoliberales, se caracterizaron por un notable incremento de la desigualdad de renta, por la concentración persistente de la riqueza en las clases más ricas de la población, por la rápida expansión de la clase de microempresarios, por la reducción del empleo público y estancamiento del sector formal. (Dupas, 2005: 39).

El sector más afectado fue sin duda la clase trabajadora. Estudios realizados sobre las cuestiones laborales apuntaron que de los empleos formales generados en Brasil entre 1985 y 2002, la mitad fue en el sector publico, quedando el sector privado con la contratación de puestos de trabajo más precarios, tales como por tareas y temporarios.

Sin embargo tenemos la reacción a ese cuadro de crisis por parte de la clase trabajadora a través de la práctica de la ES. Son innumeras las acciones en ese sentido realizadas en América Latina a partir de la década de 1990. En Brasil son organizadas por movimientos como el MST – Movimiento de los sin tierra, que empiezan a construir cooperativas populares en el medio rural; en Argentina y Brasil se organizan cooperativas de trabajo en empresas recuperadas por sus trabajadores. Otra iniciativa en ese sentido es la creación de muchas cooperativas populares urbanas por parte de la CUT, mayor central obrera de Brasil.

Según Paul Singer, uno de los más conocidos investigadores de la economía solidaria de Brasil, el crecimiento de esas prácticas de producción y trabajo autogestionario es fruto de la diversidad y multiplicidad de experiencias:


“En la medida en que las luchas fueran se desarrollando, hubo un esfuerzo creciente ( y aún no finalizado) de desarrollar una teoría de una “otra economía”, basada en la pose colectiva de los medios de producción por unidades asociativas que poden asumir o no la forma de cooperativas, pues allá de los emprendimientos productivos, compone la economía solidaria otras iniciativas como las organizaciones de micro finanzas, cooperativas de consumo, clubes de cambios, empresas recuperadas de autogestión, entre otras.” ( Singer 2006: 202).


Lo que caracteriza la composición de la ES en América Latina es su origen de clase, básicamente compuesta por trabajadores(as) desempleados(as) e informales, que crean emprendimientos colectivos, organizado a partir de los principios de la autogestión y democracia participativa en las relaciones de producción y organización del trabajo. Son principios antagónicos al capitalismo, por ello tiene una potencial crítica práctica hacia la propia sociabilidad capitalista orientada por los valores de la competición, individualismo y acumulación privada del capital a cualquier costo.

La ES no puede ser entendida solo como una alternativa de generación de empleo. Debe ser entendida como un movimiento social que a través de sus acciones tiene posibilidad de crear transformaciones materiales así como culturales en la sociedad actual, o sea, en el campo material, las acciones de este movimiento tiene propiciado la organización de los trabajadores en cooperativas, asociaciones, recuperación de empresas cerradas. En el campo cultural, las transformaciones producidas son las relacionadas con las nuevas formas de relación de solidariedad, de ayuda mutua, de reciprocidad. O sea, cambios en el terreno de los valores en ese caso de cooperación, igualitarismo y ciudadania (Picollotto, 2008).

En este sentido, la ES en América Latina, adquirió un fuerte sentido de crítica práctica inserta en el contexto de las nuevas formas y movimientos sociales, cuya mayor expresión fue el proceso del Foro Social Mundial que proporcionó un espacio de amplificación de esas prácticas contra-hegemónicas como alternativa a la lógica capitalista así como posibilitan el avance de la creación de identidades de los protagonistas de la economía solidaria.

A partir de este contexto, rápidamente la vanguardia del movimiento de la ES, representada por los nuevos actores sociales que asumirán la dirección de ese proceso organizativopolítico, principalmente las ONGs, pudieran crear espacios de articulación y movilización en torno a este tema. Los foros de ES y las redes constituidas, representan formas de auto-organización que van creciendo tanto en movilización social, como en fuerza política junto a los poderes públicos y la sociedad, no sólo en el ámbito nacional, sino también internacional, en la medida que muchas redes se estructuran como articulaciones supranacionales.

En un estudio sobre la ES, Luis Razeto, utiliza el concepto de Gramsci para un análisis de los retos de la construcción del movimiento social de la economía solidaria que tenga un sentido contra-hegemónico. Según Razeto, el pensador italiano identifica tres grandes etapas u fases que todo movimiento social que plantea un proyecto alternativo debe transcurrir.

La primera es la fase de la escisión, que puede ser también diferenciación u separación, donde el movimiento busca expresar su propia identidad, mostrar que es distinta y afirmar su diferencia en relación a quienes busca superar. Cuando se ha completado la fase de la escisión, o sea, cuando ya se tiene una identidad, se tiene una claridad respecto al que se es, en ese caso, cuando se tiende a pasar a una segunda fase, que es la fase del antagonismo.

En la fase del antagonismo se identifica como la etapa en que “el movimiento empieza a combatir la otra realidad, desde la cual se ha separado: se lucha contra, se le critica, se la denuncia, se desarrolla una acción de lucha, donde se está antagonizando el adversario” (Razeto,s/f).

Pero Razeto señala la advertencia de Gramsci según cual en esa fase hay un gran peligro de que uno se subordine y pierda, y le introduzcan “contrabando ideológico”, y le introduzcan maneras de pensar o racionalidades que no son las propias. Otro peligro es el dogmatismo, pues hay un gran esfuerzo, como muy dogmático, para evitar cualquier contaminación, porque cualquier contaminación debilita el antagonismo.

En el caso de la ES es posible añadir que el movimiento encontrase en una fase de transición entre la primera y la segunda etapa, pues si en la primera etapa hay la búsqueda de identidad en el antagonismo se está experimentando la dependencia del adversario (la economía capitalista), eso porque se está definido como “anti”, como “anticapitalista”, “otra economía”. Pero todavía hay una definición a partir de una negación.

Todavía la etapa fundamental es de la autonomia, que es la más necesaria para que cualquier movimiento que buscan transformar la realidad. En esa fase no hay sólo separación y antagonismo, sino autonomía que consiste en elevarse a un punto de vista superior, que no es lo mismo que separación u independencia. Según Razeto la autonomía es el mayor desafió de un proyecto pues:


“[…]se llega a acceder a un punto de vista más alto, superior, más comprensivo; no solamente estar fuera, que es la separación, no solamente estar contra, que es antagonismo, sino estar sobre, o sea, haber alcanzado una visión más amplia y ser capaz, por lo tanto, de valorar incluso al adversario, de aprender algunas cosas de él y empezar a captarlo, a ganarlo, ya no tener temor de ser absorbido, sino empezar a absorber[…]”[4].


O sea, si construir un proceso contra-hegemónico es ir más allá; es ir en contra la hegemonía de un sistema, pero es también ir en contra los principios creadores del sistema hegemónico y proponer nuevos valores y paradigmas, la ES puede ser comprendida como un nuevo movimiento social con perspectivas contra-hegemónica.

Un ejemplo en el movimiento que realiza la etapa de escisión y antagonismo es la experiencia del Foro Brasileño de Economía Solidaria-(FBES)[5] como instrumento organizativopolítico del movimiento de la Economía Solidaria de Brasil[6] que se propone a partir de una plataforma programática que conforma estrategias de organización y acción política llegar a la etapa de la autonomía, o sea, de un proyecto contra-hegemónico. Por ahora es posible identificar que el FBES está en la etapa del antagonismo, de construcción de identidad y diferenciación hace al adversario, o sea, de la economía capitalista.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

GENTE CARACOL - A cidade contemporânea e o habitar as ruas



Edson Luiz André de Sousa & Rita de Cássia Maciazeki Gomes

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"É um traço fundamental de nossa cultura o homem desconfiar profundamente de pessoas fora do seu próprio meio"
Robert Musil - "O homem sem qualidades"

Uma experiência de vertigem irrompe dentro de nosso corpo diante do enigma da cidade contemporânea. Ritmos inebriantes subvertendo a lógica urbana dos sentidos nos mostram as cicatrizes destes espaços compartilhados. Olhar ao redor e ver que tudo move-se com velocidade, quase tudo. Esquinas que se cruzam, ruas infinitas de uma cidade que se compõe na multiplicidade de tantas outras. Cidade de cada olhar, cidade de cada andarilho que passa sem seguir os trilhos da estação. Em um ritmo sorrateiro, de um dedilhar de violão, compõem uma melodia única, com seus passos lentos perfurando o fluxo da multidão. Do meio, do centro aparecem esses corpos, como uma névoa que turva nosso olhar não habituado ao contorno desses seres desconhecidos que são constituintes da paisagem urbana.

O contato com a rua e com as realidades que ali se apresentam, para além da cobertura de um fino véu que a obnubila e nos protege, instaura uma sensação de vertigem, de embriaguez, "de euforia da rua"(1) que nos fere os sentidos e embaralha nossa percepção. O trabalho que nos propomos em Gente-Caracol: a Cidade Contemporânea e o Habitar as Ruas(2) foi o de nos aventurarmos a uma caminhada pelo espaço público da cidade e estabelecermos contato com a população em situação de rua. Estar na rua e estabelecer contato com o que ali se passa exige disposição para interação e trocas. Implica também permitir ser tocado, acarinhado e por muitos momentos perceber um ruído de perturbação em muitas certezas. Exige evidentemente uma atitude de implicação(3). A caminhada pela cidade de Porto Alegre esteve inspirada no movimento-do-trecheiro(4) que com passos lentos rompe a multidão. Assim, sob o céu da cidade, caminhamos com o povo da rua adentrando trechos, mocós, ruas, histórias de vida em busca de olhares, narrativas, gestos, expressões corporais que compõem seus modos de existir na cidade.


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O contato com a rua e com as realidades que ali se apresentam, para além da cobertura de um fino véu que a obnubila e nos protege, instaura uma sensação de vertigem


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Constatamos que pensar a 'cidade contemporânea' e o 'habitar as ruas' diz de um deixar-se permear pela 'diversidade da vida' presente nas grandes cidades; acompanhar e delinear os movimentos que se produzem, mas também abrir brechas para pensar as relações que se estabelecem a partir daí. Pensar a população em situação de rua é cada vez mais fundamental. O fato de abrirmos espaço para a população em situação de rua como meio de deixar falar, trazer uma realidade que pouco temos contato, e na maioria das vezes, já tão impregnada por uma visão estereotipada, estigmatizada, por si só, já se constitui em um desafio. Aqui trabalhamos de duas formas o enunciado 'habitar as ruas': enquanto espaço de interação, de encontro, espaço da pólis. Espaço de pensar a vida, de relacionar-se com o outro, de construir alternativas de vida de qualidade para todos e não apenas para alguns. E também, como espaço de abrigo, refúgio para àqueles que não moram entre quatro paredes, e têm a rua como casa.

No decorrer do trabalho através da contextualização da cidade contemporânea, em um breve histórico da cidade de Porto Alegre em relação às classes mais pobres, a ocupação da rua enquanto espaço de moradia e a constituição de uma casa na rua pudemos constatar que o habitar as ruas, na maioria das vezes, não passa por uma escolha. Assim, a constituição de uma gama de pessoas chamadas de 'moradores de rua' está pautada por uma questão sócio-econômica que contribui para o aumento de pessoas sem teto em nossas cidades. Chamamos a atenção para as muitas palavras que são utilizadas para denominar a população em situação de rua: mendigo, marginal, indigente, maltrapilho, louquinho, vagabundo, sem-vergonha, perigoso, preguiçoso, assim poderíamos enumerar tantas outras. Todas elas dizem de uma coisa em comum: o prejulgamento moral e os preconceitos estabelecidos em relação às pessoas que estão em situação de rua. Poderíamos indagar: Qual o lugar na cidade para a população em situação de rua? Que espaços são possíveis para àqueles que por vontade e/ou necessidade vivem em constante movimento?


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Assim, a constituição de uma gama de pessoas chamadas de 'moradores de rua' está pautada por uma questão sócio-econômica que contribui para o aumento de pessoas sem teto em nossas cidades.


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Poderíamos, aqui, lembrar de Kafka e a Muralha da China. O Imperador da China resolveu construir uma muralha que contornasse a imensidão do Império e o protegesse contra a invasão dos nômades vindo do norte. Tal construção mobilizou a população inteira por anos a fio. Conta Kafka que ela foi empreendida por partes: um bloco de pedras era erguido aqui, um outro ali, mais um acolá, e não necessariamente eles se encontravam, de modo que entre um e outro pedaço construído em regiões desérticas abriam-se grandes brechas, lacunas quilométricas. O resultado foi uma muralha descontínua cuja lógica ninguém entendia, já que não protegia de nada, nem de ninguém. Talvez apenas os nômades, na sua circulação errática pelas fronteiras do Império, tinham alguma noção do conjunto da obra. Enquanto isso, um sapateiro residente em Pequim relatou que já havia nômades acampados na praça central, a céu aberto, diante do Palácio Imperial, que seu número aumentava a cada dia(5). Poderíamos indagar o quanto essa história reflete a paranóia do Império que se frustra na tentativa de proteger-se dos excluídos que ele mesmo suscita, cujo contingente não pára de aumentar numa vizinhança de intimidação crescente no coração da capital. A muralha da China poderia ser aproximada à configuração da cidade contemporânea. Casas gradeadas, busca de maior conforto e segurança, um lugar a salvo, longe dos desconectados(6) do sistema. Dados da prefeitura de Porto Alegre, dizem que a cada ano que passa aumenta o número de pessoas em situação de rua. São pessoas que não mais moram entre quatro paredes, mas no coração da cidade e incomodam pelo simples fato de existir.


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O lugar que resta ao 'morador de rua'(7) é o lugar estigmatizado, colado a um discurso da população que o vê enquanto dejeto da sociedade.


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O lugar que resta ao 'morador de rua'(7) é o lugar estigmatizado, colado a um discurso da população que o vê enquanto dejeto da sociedade. Seu lugar é de não-lugar, de quem não deveria estar onde está, de quem deve seguir adiante, não se sabe para onde! Instala-se assim, um movimento de expulsão da casa, do sistema econômico que o força a estar no lugar do sem-nada, sem-vínculos, em falta com a sociedade, fora das relações sociais. Mas, dentro do espaço estigmatizado que lhe cabe: o marginal, o perigoso, o preguiçoso, que não quer trabalhar, que está na rua porque quer... Seria possível ter força para romper com este lugar já estabelecido socialmente? Ao olhar o mapa esquadrinhado da cidade, em ruas e casas, qual o lugar da pobreza na cidade concreta, dinâmica, historicamente reconstituída cotidianamente? Para responder a essas questões propomos uma desnaturalização da categoria 'morador de rua', tal como fora apresentada, e acompanharmos brevemente a experiência do Jornal Boca de Rua.

O Jornal Boca de Rua, é um periódico trimestral, produzido e comercializado pela população em situação de rua de Porto Alegre. Constitui-se em um espaço de escuta e fala, na medida em que se discutem temas referentes ao cotidiano das ruas, pautados nas edições do jornal. Sua potência de intervenção se produz no sentar com as pessoas, sentir o toque delas, contribuir para que se vejam como pessoas que têm direitos e que têm deveres. O fato de terem a oportunidade de se expressar sem intermediários faz os integrantes do jornal sentirem-se outra vez parte da sociedade que os excluiu, colocá-os como sujeitos de sua história, como pessoas que têm e conhecem seus direitos. A população em situação de rua tem o direito de se comunicar, expressar seus pontos de vista sobre a sociedade (coisa que um jornalista da grande imprensa não saberia fazer, por mais bem intencionado que fosse), reivindicar direitos, contestar os poderes que sobre eles interferem. Mas, o Jornal Boca de Rua tem a proposta de ir além, e ter um caráter emancipatório. Por meio do jornal, pretende-se que os participantes possam começar a escrever ou melhorar a escrita, voltem a estudar, tratem da saúde, estabeleçam outra relação com a cidade(8). Na primeira edição, o Jornal Boca de Rua trouxe como matéria de capa Vozes de uma Gente Invisível:


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Por meio do jornal, pretende-se que os participantes possam começar a escrever ou melhorar a escrita, voltem a estudar, tratem da saúde, estabeleçam outra relação com a cidade(8).


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O povo da rua passa fome, não tem onde morar, dorme na beira das calçadas, debaixo de ponte, dentro dos esgotos, em cima dos banheiros públicos, nos carrinhos de papelão ou em casarões abandonados. Mas o povo da rua fala. O povo da rua tem boca. (GENTE Invisível, 2000, p.1)

A comunicação abriu as portas para estas pessoas se sentirem vivas; uma estratégia de politizar a vida nua, como diria Agamben. Assim, o Jornal Boca de Rua pode ser pensado como um espaço de produção de agenciamentos, um espaço de falar e ser ouvido, de construir juntos formas de pensar sobre si mesmo, a relação com o outro e com a cidade. O que implica levar em conta o sistema capitalista, individualista, de uma distribuição de renda perversa e injusta em que estamos inseridos. O papel do jornal é também chamar a atenção da sociedade para o fato de que somente com uma mobilização de todos a realidade pode mudar. É preciso ampliar os canais de comunicação com entidades que trabalham com a população em situação de rua para que, efetivamente, a participação destas pessoas esteja garantida. A relação que se estabelece junto aos vendedores do jornal passa por uma relação de troca, em que todos aprendem tendo como mola propulsora o afeto, que é o diferencial do trabalho. Desta forma, acompanhamos no trabalho do Jornal Boca de Rua a força da comunicação como dispositivo que mobiliza um outro olhar sobre si e sobre a vida.

Indicamos, assim, que o habitar as ruas vem num sentido propositivo de abrirmos brechas em nossas relações para o convívio com o outro, com o diferente. Abrir-se a uma cidade múltipla, uma cidade do contato, da vida. Assim apontamos para uma indissociabilidade entre 'vida e política'. Ao estabelecermos uma crítica à privatização do espaço público que esvazia o que de político há nele - espaço aberto para as discussões - a polis, como diria Junia Vilhena, abrimos espaço para outras realidades para além das homogêneas. Nos abrimos para a multiplicidade, a instauração de uma cidade subjetiva segundo Tânia Galli. Percebemos a perturbação em nosso modo de vida na cidade contemporânea. Abrirmos nosso horizonte de visão para a estrutura social em que nos situamos. Exige desnaturalização da 'vida nua'. Faz-nos pensar em nosso papel enquanto parte da multidão que compõe a cidade, conforme Negri. E ainda, perguntarmos: o que cabe a cada um de nós? Questão crucial que nos deixa em estado de desassossego.


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Apostamos, portanto, em uma nova postura, uma proposta de estabelecer relação, de um pensar sobre si e sobre a vida que leve em conta o outro que está ao lado.


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Apostamos, portanto, em uma nova postura, uma proposta de estabelecer relação, de um pensar sobre si e sobre a vida que leve em conta o outro que está ao lado. Recusamos o argumento fácil da necessidade de construir silenciosamente a muralha que nos protege dos excluídos, num contraponto contundente ao que nos vendem o tempo todo os meios de comunicação. O Jornal Boca de Rua gera sua comunicação mesmo que para poucos. Pré-disposição portanto, ao estabelecimento de uma relação de 'luta e de encontro'. Luta de várias forças que permeiam vários olhares sobre si e sobre a cidade, luta que se dá entre a visão e a confusão de dois pontos de partida de história. Encontro que é potencializador de todos os acontecimentos que daí suscitarão(9).

E quem sabe, estabelecermos conexão com intervenções como a do Jornal Boca de Rua que abre espaço para o protagonismo de falas e críticas apresentadas pela população em situação de rua. De um protagonismo que emerge da possibilidade de apresentar-se como diferente e compor a gama de multiplicidade que se estabelece na cidade. Estaremos assim, estabelecendo uma relação utópica com a cidade.



NOTAS:

(1) Euforia da rua, termo utilizado pela população em situação de rua.

(2) Dissertação de Mestrado de Rita de Cássia Maciazeki Gomes, sob a orientação de Edson Luiz André de Sousa, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

(3) Utilizamos o entendimento de implicação segundo as contribuições da Análise Institucional. A análise das implicações coloca-nos a questão da necessária análise das relações que temos com o mundo, com o nosso campo de trabalho, com a nossa vida; refere-se, ainda, a importância das coisas serem analisadas em situação, no vivido. (R. Lorau in Ozório, 2003). Concordamos ainda com a idéias defendidas por Lúcia Ozório, 2003, quando diz que a implicação refere-se também às minhas disposições, ou seja, aos meus investimentos enquanto sujeito do inconsciente que tem algo que pulsa.


(4) Movimento-do-trecheiro, vem da idéia de trecho: espaço, o lugar ocupado pela pessoa em situação de rua.


(5) Cf. Peter Pal Pelbart Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. Resumo do texto de KAFKA, Franz. Durante a Construção da Muralha da China. In Narrativas do espólio. São Paulo: Cia das Letras, 2002.


(6) Idéias propostas por Peter Pal Pelbart, 2003.


(7) Optamos em não trabalhar com a categoria "morador de rua" numa tentativa de romper com o estigma associado a essa palavra como: o mendigo, o vagabundo, o marginal, o perigoso, o preguiçoso que não quer trabalhar, que está na rua porque quer... muitas vezes naturalizados em nosso cotidiano.


(8) De acordo com o texto-base do projeto do Jornal Boca de Rua, Porto Alegre, 2005. Texto inédito.


(9) Idéias de luta e encontro desenvolvidas por Cecília Coimbra em palestra proferida no X Encontro da Associação Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO Regional Sul, em Curitiba, em setembro de 2004.




REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEM, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

FONSECA, Tania Mara Galli. "A cidade subjetiva". In: Fonseca, Tania M. G. (org.) Cartografias e devires - a contrução do presente. Porto Alegre: UFRGS, 2003.

NEGRI, Toni. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

PELBART, Peter Pál. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

VILHENA, Junia. (2003). Da claustrofobia a agorafobia. Cidade, confinamento e subjetividade. In: Revista do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Ed. UERJ. Vol. IX. Pp. 77-90.E

http://www.polemica.uerj.br/pol16/oficinas/lipis_1.htm

Lei Maria da Penha completa três anos

A lei Maria da Penha, que protege as mulheres que sofrem violência doméstica, completou TRÊS anos./ Com a lei, aumentou a pena de lesão corporal leve em caso de agressão./ Também acabou com a necessidade de a vítima manter a queixa contra o agressor durante o julgamento e criou juizados especiais para tratar dos casos de agressões./ Além do aumento do número de denúncias nas delegacias especializadas, a lei fez crescer a busca pelo serviço telefônico da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres./ Entre Janeiro e Junho deste ano, o serviço registrou mais de CENTO E SESSENTA MIL atendimentos./ Um aumento de TRINTA E DOIS por cento em relação ao mesmo período de 2008.///
Fonte Chasque agência de notícias.